As fotografias que não tirei ficam como lamento de mim próprio, cidadão incauto de um mundo aflito
.
Passo pelas grades de um jardim de infância.
Sou atraído pelo galrear alegre das crianças, pelo irresistível apelo da sua pureza de alegria e juventude.
Puxo da minha máquina/bloco de apontamento e tiro duas fotos.
Ai de mim!.... Oh infeliz, oh réprobo, oh mal aventurado!...
Sou rodeado instantaneamente por um grupo de vigilantas, cheias de zelo proibitivo e de argumentos esmagadores.
- Está bem, desculpem, está bem, eu prometo que não torno!...
Apaguei as fotos (duas fotos!...) ali logo na presença enérgica da única vigilanta que sobrou para dialogar (desconfiada e azedamente) comigo.
Se eu fosse criminoso preparando um roubo de crianças, teria fotografado de longe, à socapa, com uma lente de longo alcance. E se quisesse mesmo roubar, para que diabo ia fotografar antes???...
Se eu fosse fotógrafo profissional namorado da prima do vizinho de não sei quem, ia lá dentro e podia fotografar os meninos todos, com nome e morada, e os papás até me pagavam.
Não sei se isso me daria direito a aprisionar o corpo (ou a alma..) deste ou daquele menino.
Entre fotografar um bando de crianças vestidas todas de igual, anónimas no vozear cristalino da sua alegria colectiva, e roubar uma delas, levá-la para longe de avião, sumi-la do doce afago de seus amorosos pais… vai uma certa distância!...
O que ressalta de tudo isto não é o zelo de quatro ou cinco vigilantas, nem o perigo real que a situação envolve.
O que ressalta é a desconfiança radical, a vulnerabilidade das pessoas isoladamente, os estereótipos duma coisa que se não sabe, mas se pressente e é esmagadora.
A raiz do medo em suma, a planta funesta que seria desejável extirpar do coração do mundo, a golpes de ternura e de justiça; a golpes de paz e de amor pelo próximo.
Devoradores de telejornais, aceitamos placidamente todas as reportagens indiscretas (frequentemente obscenas e até imorais) da televisão.
A televisão é o poder.
Está acima de todos os outros “observadores” da realidade.
Pode entrar sem bater à porta, surpreender os pobres na sua vergonha de modéstia, os doentes no seu desconforto doloroso, aqueles que choram os seus mortos para exibir indecorosamente a sua dor e o seu irreparável desgosto.
Um rapaz como eu não pode assomar-se a um jardim infantil, comovidamente escondendo a lágrima saudosa de seus netos, sem que as eficazes vigilantas vejam em mim o pedófilo ameaçador, o raptor iníquo, o infamante violador.
Oh pobres almas, Oh triste mundo!...
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